Veja-se como em cada legislatura se propõe e se
discute uma das poucas questões graves de que o parlamento ainda se ocupa.
Referimo-nos à coisa a que, no calão oficial em que tem degenerado a língua
pátria, se chama — a questão da fazenda.
Reunidas as câmaras e aberto
perante elas o orçamento do Estado, começa-se invariavelmente por constatar, num
trémulo elegíaco de sinfonia fúnebre, que continua a existir o déficit. Cada um
dos três governos a quem a coroa
alternadamente adjudica a mamadeira do sistema encarrega-se de explicar aos
taquígrafos essa ocorrência — aliás desagradável, cumpre dizê-lo — mas de que
ele, governo em exercício, não tem a culpa. A
responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido pelos seus
esbanjamentos e pela sua incúria.
Para cada um desses três
governos sucessivamente encarregados de trazerem o déficit ao regaço da
representação nacional, o governo que imediatamente o precedeu nesse mesmo
encargo é o último dos imbecis.
Tal é o conceito formidável em
que cada um dos referidos três governos tem os outros dois!
A coroa pela sua parte — e é
este o mais augusto do todos os seus privilégios — é sucessivamente da opinião
de todos os três ministérios; e depois de haver retirado, com sincero nojo, a
sua confiança aos imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a coroa torna a
restituir a citada confiança, com uma efusão de júbilo tão sincero como o nojo
anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas colocados
cronologicamente em sentido inverso daquele em que estavam, ou sejam, por sua
ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.
Trocadas as descomposturas
preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensável, ainda
mais uma vez, recorrer ao crédito, e faz-se um novo empréstimo. No
ano seguinte averigua-se por cálculos cheios de engenho aritmético que para
pagar os encargos do empréstimo do ano anterior não há outro remédio senão
recorrer ainda mais uma vez ao país, e cria-se um novo imposto.
Fazem-se empréstimos para
suprir o imposto, criam-se impostos para pagar os juros dos empréstimos,
tornam-se a fazer empréstimos para atalhar os desvios do imposto para o
pagamento dos juros, e neste interessante círculo vicioso, mas ingénuo, o
déficit — por uma estranha birra, admissível num ser teimoso, mas
inexplicável num mero saldo negativo, em uma não existência, — aumenta sempre
através das contribuições intermitentes com que se destinam a extingui-lo já
o empréstimo contraído, já o imposto cobrado.
Assim como os alforges dos
antigos pobres das feiras e das extintas ordens mendicantes, o déficit tem dois
sacos, um para diante outro para trás, ambos destinados a receber o vácuo. Num
dos sacos mete-se a dívida flutuante, no outro mete-se a dívida consolidada. De
quando em quando há um relâmpago de júbilo, porque parece por um momento que o
alforge do déficit está vazio, isto é, que está sem vácuo dentro: é a dívida,
que se achava em estado de flutuação no saco da frente, que passou no estado de
consolidação para o saco de trás.
A alegria fugaz mas intensa que
provém da ilusão desta gigajoga vale o dinheiro que custa, mas custa sempre
alguma coisa, porque de todas as vezes que eles mexem na dívida, seja para o que
for, mesmo para a mudar de saco, ela cresce.
Pela parte que lhe respeita o
país espera. O quê? O momento em que pela boa razão de não haver mais coisa
que se colecte, porque estará colectado tudo, deixe de haver quem empreste
por não haver mais quem pague.
No entanto o problema de
aumentar a riqueza — único meio de prover aos encargos — é considerado como
absolutamente estranho à questão da fazenda. E todavia nem toda a gente
ignora que a riqueza não aumenta senão pelo desenvolvimento progressivo do
trabalho e que este se acha ligado aos progressos da indústria. (...)
Ramalho Ortigão
Ramalho Ortigão
«As
Farpas» (Vol. 6) - Junho de 1882
:-)))))))
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