ESTOU PERDIDO, DEVO PARAR? NÃO SE PÁRAS ESTÁS PERDIDO! Goethe

- ESTOU PERDIDO, DEVO PARAR? - NÃO, SE PÁRAS, ESTÁS PERDIDO! Goethe



domingo, 27 de fevereiro de 2011

Os meus veículos (2) - Bicicleta

Bicicleta Classica Orbita - Tipo Pasteleira em

A minha primeira bicicleta, que me foi oferecida após a quarta classe (juntamente com um relógio Cauny quadrado), foi talvez  o objeto mais cobiçado e utilizado da minha vida.
Para terem uma noção, por aquela altura uma bicicleta era um veículo que preenchia quase obrigatoriamente os seguintes requisitos: era preta, tinha guarda lamas metálicos à frente e atrás, descanso, porta bagagens atrás, com um sistema de molas, guarda corrente, sistema de iluminação com dínamo à roda da frente, campaínha e bomba de encher, que se alojava em duas cavilhas do quadro.
A minha bicicleta não tinha qualquer tipo de mudanças - pedaleira única e pinhão fixo (também eram frequentes as mudanças (3) de tambor e pinhão único, mais para a gente crescida). Mudanças com pinhões múltiplos só nas chamadas bicicletas de corrida, de pneu fino e que não estavam acessíveis à rapaziada comum, nem nós as queríamos para nada.

Passei muitos Verões na companhia da minha adorada bicicleta.
O primeiro objetivo após as semanas iniciais de limpeza e lubrificação diária, era começar a aligeirar o veículo de todas as peças que considerávamos inúteis e pesadas, até atingirmos o estado da bicicleta da Audry Hepburn, que depois de muito googlar foi o veículo que encontrei mais parecido com essa minha bicicleta de sonho.
Aqui a dificuldade consistia em vencer a resistência dos nossos pais às transformações, pois achavam sempre que estávamos a desfazer o velocípede. Geralmente começava-se pelos guardas lamas, com a desculpa de empenos, que já não se conseguiam corrigir, depois o descanso com a mola abalada, os faróis porque já tinham os fios traçados, até atingirmos a ligeireza pretendida : duas rodas, um quadro, um selim e um volante, os travões, reduzidos idealmente ao da retaguarda.

Muito tempo antes de vir  a moda das mountain bike e das bmx, tivemos isso tudo - organizámos provas de resistência de 12 horas com teams de dois condutores em circuitos de terra de 3 ou 4 kms, provas de descida cronometradas, sempre com alguns feridos no saldo final ( isto muito antes de sabermos dizer down hill), jogos de futebol de bicicleta no campo pelado da aldeia, excursões noturnas e diurnas.
Sabíamos desmontar uma bicicleta, consertar furos, substituir cabos e contávamos com a paciência do garageiro - o tio Júlio, para nos resolver os problemas mais complexos.
Lembro-me de numas férias grandes, aí pelos 15 anos, termos conseguido (éramos quatro) autorização para uma expedição minhota - quatro dias de bicicleta e mochila às costas: Vila do Conde - Viana - Ponte de Lima - Arcos - Braga - Barcelos - Vila do Conde. Para nós foi o equivalente a uma travessia do Sahara!

Por essa altura as bicicletas tinham matrícula municipal (amarela, e que nós também arranjávamos maneira de fazer desaparecer!) e livrete. O aloquete era um acessório desnecessário!

Aí pelos 16 anos resolvi pintá-la de amarelo, inspirado num movimento holandês que "confiscava" as bicicletas, pintava-as de amarelo para as descaracterizar e ficarem de utilização coletiva. Sei lá se por isso algum tempo mais tarde foi roubada ao meu irmão, deixando um vazio que nem a minha atual Scott, cheia de suspensões, truques e triques, veio preencher.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A questão da cassete!



Assisti ontem à noite a uma agradável palestra de Artur Santos Silva, banqueiro e humanista, subordinada ao tema "Uma política sustentável para Portugal"!
Traçou um panorama genérico sobre o atual estado do país, realçou como prioridades a necessidade de Portugal honrar inequivocamente os seus compromissos e insistiu em que não vê alternativa política que não passe por uma convergência, o mais alargada possível, entre as forças partidárias existentes, numa lógica de salvação nacional.
Sendo uma pessoa moderada e apaziguadora valorizou o grande esforço de progresso do país nas últimas décadas, elencou alguns dos erros cometidos e mostrou-se esperançoso de que os Portugueses conseguirão encontrar a forma de ultrapassar a crise que vivem.
Não tendo própriamente dito nada de inovador, conseguiu num ambiente entre a conferência e a tertúlia, ao longo de mais de uma hora, sem recurso a power points ou a sound bites, cativar uma audiência heterogénia.
Oriundo do meio financeiro e aliando a isso um elevado padrão ético e cívico, está habituado a ser avaliado não pelo sucesso que as suas palavras causam, mas pelos resultados concretos das suas acções. E isso permite-lhe uma atitude isenta e descomprometida, pouco habitual no panorama público nacional, em que o que conta é parecer ter razão, mesmo que à custa da tortura das estatísticas e da realidade.

Tenho há muitos anos o Dr. Santos Silva (Artur), como o meu candidato preferido para Presidente da República (mesmo tendo um percurso ideológico diverso do meu!).
Talvez fosse este o momento, com cinco anos de antecedência de começar a pensar em alguém, que tivesse o dom de unir os Portugueses em torno dum desígnio comum - e a serenidade, a sensatez e a coerência que possui, são características incontornáveis para quem se proponha liderar e motivar o País.

Mas se não ouvi nada de novo, nem nada que já não soubesse, a oportunidade de "estar ao vivo" num evento com pessoas, permite divagações e pensamentos interessantes.
Conforme ouvia o Dr. Santos Silva falar e me deixava envolver pela melopeia do seu discurso, percebi que o seu timbre de voz, a sua rouquidão "amaciada", as inflexões, a cadência rítmica da sua oratória, eram muito idênticas à de Fernando Ulrich, seu sucessor na liderança do BPI.
Achei também curioso que o único momento menos "cool" da conversa, foi quando se referiu ao facto de ter havido um grande crescimento da importação de viaturas no último ano, apesar do desiquilíbrio da balança comercial, em que comentou - "Anda tudo doido!".
Este foi precisamente o comentário mais sentido e mais polémico de Fernando Ulrich, numa recente entrevista à Sic, também comentada aqui!

E aí veio-me à memória a acusação da cassete, com que o PCP, tem sido bombardeado e menorizado ao longo dos tempos, pelo facto dos seus principais dirigentes, falarem no estilo de Álvaro Cunhal (refirindo-se, mais do que às ideias, à forma).
E na verdade tal circunstância nada terá de depreciativa, traduzirá apenas a pertença a uma organização humana muito coesa, com uma estrutura hierárquica respeitada e uma forte identidade de grupo.
Seja um banco, um partido ou um grupo de teatro!
A cassete poderá não significar "lavagem ao cérebro", mas muito "brain storming".

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Os meus veículos (1) - Trotineta



Tive antes deste, outros veículos - o carrinho de bébé, um triciclo - mas deste, que tive pelos meus 9 anos, lembro-me bem, das muitas tardes, passadas a descer a rampa de casa dos meus pais.
A plataforma em fórmica - material revolucionário que permitia uma limpeza e uma leveza superior à madeira, sem enferrujar nem risco de cortar como acontecia com a chapa metálica - não destoava com os móveis da cozinha a estrear!

A da fotografia não é a original, "a minha", mas corresponde à imagem mental que guardo do veículo!

Não só a tecnologia era outra, como penso que a motricidade infantil também não era comparável com a actual - não me lembro de descer escadas, dar saltos (hoje ollies), como hoje vejo os meus filhos fazerem, porque havia limitações "técnicas" (hoje um puto de 9 anos discute e troca rolamentos, "os abec7, são melhores que os abec5"), mas também porque havia menos radicalidade na vida e no lazer.
A título de exemplo, recordo que só após 1974, se começaram a comercializar em Portugal as sapatilhas de marcas multinacionais, até aí excluídas por férreas normas protecionistas (que também impediam a importação da coca-cola), estando os jovens limitados às famosas Sanjo de lona, nacionais.
A transformação da brincadeira e do divertimento num enorme negócio planetário, levou ao progresso constante dos aparatos e ao apuramento incessante das formas da sua utilização.
Para mim, as lentas tardes de trotinete eram uma forma de iludir um tempo longo, que sobrava diariamente dos deveres escolares, ainda com pouca ocupação  "extracurricular".
Hoje a trotinete, os patins e sobretudo o seu sucessor moderno, o skate, são utilizados pelos jovens numa lógica de empenhado aprimoramento, com desenvolvimento de manobras por todos conhecidas e profusamente divulgadas em canais de TV temáticos, publicações de especialidade e pela publicidade de uma influente indústria de roupa, gadgets e imagem geracional.

A cultura e a sociedade contemporânea trouxeram a criança para o centro da vida coletiva. Tal atitude constituiu do meu ponto de vista, um progresso sem precedentes na história, um estádio "pós psicanalítico" da humanidade, momentâneamente apaziguada com os seus fantasmas e traumas ancestrais. Saibam-se evitar os excessos, corrigir alguns desiquilíbrios criados (voltar a valorizar a sabedoria dos velhos, por exemplo, em contraponto com a energia dos novos) e teremos todas as razões para confiar no futuro.

A minha antiga trotinete, com uma aerodinâmica "espacial" e que se foi desfazendo em lascas de aglomerado e perdendo o cromado rutilante sob a pressão da inexorável ferrugem, não teria resistido hoje à necessidade de mudar tábuas, substituir rolamentos, actualizar tracks ... mas também não teria ficado na minha memória como uma companheira fiel da minha infância!
Cada tempo tem as suas virtudes!

(7) Tapeçarias de Pastrana

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No simpático blogue "Metafísica do Esquecimento" aparece muito bem contada a história destas tapeçarias góticas de origem flamenga, que enaltecem os feitos lusitanos no Norte de África.
Para quem não resista a vê-las já, existem no Paço dos Duques de Bragança em Guimarães, réplicas destas 4 tapeçarias quinhentistas, realizadas na Fábrica Nacional de Tapices (hoje, Real Fábrica de Tapices - bem no centro de Madrid, junto ao Prado) por encomenda de Manuel Azaña, Presidente do Conselho da 2ª Répública, em 1932. E que só teriam sido concluídas em 1957, data em que Salazar as comprou para as expôr em Guimarães.
E mais acertada não poderia ter sido essa decisão já que existe um curioso paralelismo entre a história das tapeçarias e as do Paço.
O Paço dos Duques foi construído em duas fases: a primeira entre 1420 e 1438 e a segunda após 1461, já depois do falecimento do primeiro duque de Bragança.
É pois contemporâneo das tapeçarias originais, encomendadas por D.Afonso V à fábrica flamenga de Tournai e datadas de 1471.

Em 1933, Salazar em visita a Guimarães, encantou-se com este peculiar edifício, que era utilizado como quartel militar. Encomendou então ao arquiteto Rogério Azevedo um plano de reconstrução de acordo com o que teria sido a sua traça no final da segunda fase construtiva.
As obras iniciaram-se em 1937, tendo-se finalizado em 1959.
Ora as réplicas espanholas das tapeçarias foram executadas entre 1932 e 1957, havendo pois uma coincidência cronológica surpreendente na história destas duas obras.

Para quem puder esperar até 2012, ano em que Guimarães será capital europeia da cultura, está prometida uma exposição dos tapetes originais restaurados, que poderão ser comparados com as suas réplicas modernas.
Muita cerveja belga se beberá por essa altura em Guimarães ...

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Philip Roth




De Philip Roth, nascido em 1933 e considerado um dos mais importantes escritores americanos vivos, acabo de ler o seu terceiro romance (O Complexo de Portnoy -1969) e já levo a meio "A Mancha Humana" (2000).
De Roth direi que além de ser prolífico (31 romances desde a sua estreia com "Adeus, Columbus" - 1959) e de ter recebido um número infindável de prémios literários, também é :

Um homem - a sua escrita tem uma visão indiscutivelmente falocrática, roçando muitas vezes o misógenismo intolerável. As personagens femininas são descritas na fronteira da anormalidade e tirando a sua mãe, figura omnipresente na sua obra e na sua cabeça, não parece morrer de amor por nenhum exemplar do género.
A sua primeira mulher, Margaret Martinson, de quem se divorciou em 1963, terá sido inspiradora da personagem da Macaca, que tanta perturbação causou a Alexander Portnoy, e da qual não se pode dizer que tenha sido propriamente bem tratada na literatura. A sua segunda mulher, a actriz inglesa Claire Bloom, sentiu-se motivada a publicar uma autobiografia (Casa das Bonecas - 1996), no ano seguinte ao seu divórcio, em que expunha o difícil carácter de Philip. Em resposta foi retratada em "Casada com um Comunista", como uma mulher que arruína o seu marido, ao publicar uma autobiografia pormenorizada do seu casamento.

Um judeu - a obsessão judaica é talvez o selo de água mais distintivo da sua obra. O enquadramento cultural, a culpa, o sentimento de rejeição social e a necessidade  da sua superação, estão omnipresentes.
No Complexo de Portnoy, os traumas sexuais são assumidos como uma herança religiosa e educacional da sua origem judaica. E embora a moral judaica seja particularmente castradora e condicionadora, a maioria das circunstâncias relatadas são comuns a outras culturas e particularmente a minorias em fase de ascensão social. A memória duma mãe que não deixa respirar, será comum a todas as culturas mediterrânicas e não só.
Ainda ontem o Público trazia um extenso artigo sobre Amy Chua, uma professora de direito de Yale, de origem chinesa, no centro de uma polémica nos Estados Unidos, por defender que a educação altamente condicionadora a que submeteu as suas filhas, está na origem do sucesso escolar e económico da sua comunidade.
Resta saber, quando chegará a sua vez de pagar em psicanálise o que pensa ter ganho na escola!

Um americano, de Newark, New Jersey - Roth fala do que sabe e por isso o roteiro das suas personagens é o do seu próprio percurso. Nascido na classe média judia de Newark, faz por lá passar quase todos os seus personagens, constituindo-se um observador atento e perspicaz da sociedade americana. Curiosamente, Portnoy, um tarado sexual que entrava em erecção até na presença duma freira, não consegue consumar uma relação quando visita Israel, a Terra Prometida.
Em "Conspiração contra a América" inspirado numa hipótese real (a apresentação do herói aeronáutico Charles Lindberg, simpatizante do nacional-socialismo, como candidato do partido republicano nas eleições de 1940, contra Roosevelt), reescreve a história do Mundo, visto por um miúdo judeu de Newark, assumindo a vitória da direita radical na América, numa altura em que na Europa decorria a segunda grande guerra ...

Nathan Zuckerman -  Se todos os livros são aparentemente sobre si próprio, ainda assim sentiu necessidade de criar um alter-ego, escritor de sucesso, que aparece em 10 dos seus livros.
Embora aparentemente o tenha morto em 1987 em Counterlife ("O avesso da vida"), reaparece em "A Mancha Humana", incontinente, após uma prostectomia, e confidente de Coleman Silk, um reitor universitário jubilado, septuagenário, que alimenta com Viagra uma relação com uma mulher de 32 anos.
Roth que se assume como um criador de falsas biografias - ele próprio sugere que a sua infância de classe média era demasiado banal para poder ser relatada - adianta que basta imaginar as pessoas normais a agirem sob pressão, para se transformar a realidade em arte.

Um génio literário - Se há 15 anos Roth aparecia na lista dos 10 mais importantes escritores americanos vivos, hoje merçê da sua pujança literária desde os anos 90, aparece no topo dessa lista.
E a leitura de Roth é efectivamente viciante.
Caracterizando com precisão as suas personagens, não dispersando a atenção do leitor por meandros desnecessários, criando a tal falsa ilusão de descrever factos, dando-lhes uma credibilidade autobiográfica, dominando a técnica da escrita com uma mestria única, Roth lê-se com deleite, mesmo quando o tema nos possa desagradar e a sua perspetiva incomodar. E essa será provavelmente a maior prova do seu génio!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

(6) Tapetes Nacionais - Beiriz



Há poucos tapetes de origem portuguesa, sendo o de Beiriz um dos dos mais conhecidos.
A história do tapete de Beiriz remonta a um passado relativamente recente.
Data do 1º quartel deste século e foi ideia de Hilda d Almeida Brandão Rodrigues Miranda, nascida em 1892 na cidade da Baía e falecida em 1949, em Beiriz (Póvoa de Varzim), onde constituiu, primeiro, uma pequena oficina e depois uma "fábrica" em conjunto com uma ajudante, Rita Conceição Campos. Começaram, assim, a produção de tapeçarias que enriqueceram com o ponto por elas inventado, o "nó de Beiriz", que se tornaria famoso. São tapetes tradicionalmente em lã, feitos artesanalmente em teares de madeira.
Após a morte da fundadora o fabrico manteve-se em mão de familiares mas a fábrica viria a falir em 1974.

Graças à perseverança do casal José Ferreira / Heidi Hannamann Ferreira, em 1988 recomeçou a produção de tapetes de Beiriz, tendo-se recrutado as artesãs da antiga fábrica.
Evitou-se, assim, o desaparecimento desta técnica, o que representaria uma perda inestimável para o artesanato local e nacional.
Na nova manufatura foram introduzidas a seda e o algodão como matérias primas, incorporaram-se novas técnicas, como o tufado e desenhos contemporâneos.
Os preços de produção variam entre os 160 e os 250 euros/m2, dirigindo-se sobretudo ao mercado institucional, estando entre os clientes o Tribunal Internacional de Haia, a Câmara do Porto e o Teatro de S. Carlos.
No recente restauro do Hotel Vidago Palace, a imponente escadaria da entrada foi atepetada com Beiriz, tendo-se recorrido a desenhos antigos do arquivo da fábrica, para a sua elaboração.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O Acordo Ortográfico



" Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa.
Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância.
Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim!
Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas.
O que é ser proativo?  Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família.
Em 'há de' há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem.
Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu.
E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião.
Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham. As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto.
Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar."
 Manuel Halpern 

Sendo os portugueses um povo aclamado pela sua capacidade de adaptação, fica já aqui a informação sobre a próxima adaptação linguística a que seremos sujeitos, de acordo com norma recente da Comissão Europeia:


"The European  Commission has just announced an agreement whereby English will be the  official language of the European Union rather than German, which was the other possibility.As part of the negotiations, the  British Government conceded that English spelling had some room for  improvement and has accepted a 5- year phase-in plan that would become  known as "Euro-English".

In the first year, "s" will  replace the soft "c".. Sertainly, this will make the sivil servants jump  with joy. The hard "c" will be dropped in favour of "k". This should  klear up konfusion, and keyboards kan have one less letter.

There  will be growing publik
 enthusiasm in the sekond year when the troublesome "ph" will be replaced with "f". This will make words like fotograf 20% shorter.

In the  3rd year, publik akseptanse of the new spelling kan be expekted  to reach the stage where more komplikated changes are  possible.Governments will enkourage the removal of double  letters which have always ben a deterent to akurate  speling.
Also, al wil agre that the horibl mes of the  silent "e" in the languag is disgrasful and it should go  away.


By the 4th yer people wil be reseptiv to steps such  as replasing "th" with "z" and "w" with "v".

During ze fifz  yer, ze unesesary "o" kan be dropd from  vords kontaining "ou"  and after ziz fifz yer, ve vil hav a reil  sensibl riten  styl.

Zer vil be no mor trubl or difikultis and evrivun vil  find it ezi tu understand ech oza.

Ze drem of a united urop vil finali  kum tru. 
Und  efter ze fifz yer, ve vil al be speking German like zey vunted in ze  forst plas.

If zis mad you smil, pleas pas on to oza  pepl."

Lá terá de ser ...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Crianças Difíceis



Todos nós já conhecemos "Crianças Difíceis"!
Normalmente os pais alardeiam a sua incomodidade à família, aos amigos, aos colegas, aos vizinhos, ou porque desde que o bébé nasceu nunca mais conseguiram dormir, ou porque as horas das refeições passaram a ser um pesadelo, seja por ser impossível a vida social por terem um filho estranho, normalmente "hiperactivo", birrento, insuportável!
Crianças diagnosticadas mais tarde, na idade escolar, como tendo perturbações do afeto ou síndromes de deficite de atenção/hiperatividade, sofreram na primeira infância (até aos três anos) de uma disfunção hoje conhecida como Perturbação Regulatória.
Ter birras faz parte dum desenvolvimento psico-afetivo normal e a sua ausência deve mesmo ser encarada com alguma preocupação.
Porém comportamentos birrentos desproporcionados e aparentemente incompreensíveis, perturbações do sono ou do hábito alimentar, estão na origem frequente dum mal estar entre a criança e os progenitores, que normalmente ainda avolumam mais a disfunção e a incompreensão mútua.

As perturbações regulatórias são alterações do processamento sensorial, que se identificadas permitem muitas vezes resolver o problema, " mudando as circunstâncias " (este conceito anda-me a soar bem, desde o post do Ortega e Gasset) e impedir a cronificação da disfunção.
Tomemos os cinco sentidos clássicos e acrescentemos-lhes mais alguns - a propriocetividade (digamos a noção de postura corporal) e a sensação gravítica.
Imaginemos um bébé com limiares de tolerância perturbados a algumas latitudes dos seus sentidos - para quem um som agudo soe insuportável, ou uma determinada banda luminosa, ou a sensação de queda eminente, sejam percepcionados como intoleráveis.
Consiguemos entrar na sua pele - e esse é o segredo para se diagnosticarem estas situações, amar a criança, ter compaixão pelo seu sofrimento, ter tempo e imaginação para o interpretar.
As pessoas próximas, os pais, os cuidadores estão em posição priveligiada para esta tarefa, muito mais que qualquer médico ou terapeuta.
(O problema está em que muitas vezes os pais, são ou tornaram-se parte do problema!).

E agora torna-se fácil perceber porque é que o joãozinho rejubila quando é bombardeado com estímulos sonoros e cócegas e já o rodriguinho berra desalmado quando a vendedora do mercado lhe grita "Ai meu rico menino"!
Porque há bébés que gostam de ambientes luminosos e outros ficam confortáveis na penumbra! E estas perturbações podem ir aparentemente ao detalhe de uma determinada côr (será por isso que as côres das meninas são tradicionalmente diferentes das dos rapazes?).
Porque há uns que adoram ser atirados ao ar pelo avô e outros desatam num choro compulsivo!
Há casos clínicos descritos de crianças que perdem o control na presença de certos cheiros, que serenam com outros, que tem aversão a certas sensações tacteis e por aí fora.

O segredo para estas "perturbações", que são mais ideossincrasias, é tratar cada criança na sua individualidade, não ter receitas universais, modelos pedagógicos e comportamentais definitivos.

 Isto não é muito mais que o bom senso, mas implica coisas que rareiam muito nos tempos que correm - tempo e disponibilidade, humildade e autoconfiança.
E sobretudo amor ...

Complexo de Portnoy



“Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao final das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha quando eu chegava, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela. Além do mais, era sempre um alívio não surpreendê-la entre uma e outra transformação – muito embora eu jamais deixasse de tentar; eu sabia que meu pai e minha irmã nem faziam ideia da natureza real de minha mãe, e o peso da traição que, imaginava eu, recairia sobre meus ombros se alguma vez a pegasse desprevenida seria demais para mim, aos cinco ano de idade.”

Assim começa o Complexo de Portnoy de 1969, terceiro livro de Philip Roth.
Monólogo de um judeu de trinta e tal anos no consultótrio do psicanalista, é um livro dotado de uma profusa ironia, envolta numa linguagem desbragada e escatológica, que nos leva amiúde ao riso (fácil!).
Roth, que tem a sua obra fortemente alicerçada nas suas memórias autobiográficas (como de resto explicitou em "The Facts - a novelist autobiography" de 1988), transporta-nos aqui para um universo neurótico, que remete para o de Woody Allen - a auto-ironia, as obsessões sexuais, a culpa omnipresente da moral judaica, o ambiente novaiorquino (em Roth, o espaço geográfico de Newark-New Jersey, da sua infância, é o cenário priveligiado da sua obra!).

 De Roth já tinha lido "Conspiração contra a América" (2004), livro que me encantou pela forma notável como desenvolve uma ficção histórica improvável e pela maestria da escrita.
Neste "Portnoy´s Complaint", 35 anos mais antigo, venho encontrar muita coisa em comum - o contexto geográfico e sociológico da história, as suas obsessões pela origem judaica, a observação do Mundo através duns olhos infanto-adolescentes.

Tive oportunidade na minha juventude, de viver algumas semanas na casa de uma família judia novaiorquina. Nunca pensei que o peso da história e da tradição pudessem marcar tanto alguém, como percebi ser o caso dos judeus. Não houve serão que não tivesse uma preleção sobre costumes ou a história sionista, visita que não fosse condicionada por essa perspetiva religiosa, mesmo tratando-se duma família pouco praticante, em que os filhos jovens não frequentavam a sinagoga e a esposa se recusava a viver confinada aos clubes sociais da comunidade judia.
Desde aí percebi melhor o forte condicionamento mental, a doentia noção de dever e pecado, que marca este povo.
Portnoy que recusa a religião que lhe saiu no berço, não conseguiu contudo escapar a um fortíssimo complexo de Édipo que lhe saiu no leite - e não esqueçamos que foi outro eloquente judeu, que descreveu cerca de 70 anos antes, este quadro pela primeira vez, embora com menos graça!

Este é o livro do mês do Clube de Leitura, estando este espaço aberto, através dos comentários, às observações que queiram aportar à discussão.
 Boa leitura! ( AQUI, pode fazer o download gratuito do livro!)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Hopper (1)


Nighthawks, 1942
Oil on canvas, 84.1 x 152.4 cm

Art Institute of Chicago

 Porque é na América que o meu imaginário anda mergulhado, recordo Edward Hopper, um dos meus pintores preferidos do novo continente.
Numa altura em que a moda dominante era o expressionismo abstrato, Hopper, um cronista da solidão urbana, cultivou um realismo angustiante, que retratou sublimemente o sentir do homem urbano moderno.



Summer Evening, 1947, coleção privada

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

FANTASIA

Fernando Ulrich

Não, não foi sonho!
Tive esta fantasia acordado: imaginei que ainda em vida, um dia olharia para um boletim de voto para a Assembleia da República e veria algo assim, com direito a preferir esta pessoa áquela, em vez de votar nas setinhas, na mãozinha, na foice e no martelo!

E que teria para escolher pessoas oriundas do mundo empresarial, da academia, da banca, da cultura, com provas dadas, com ideias conhecidas (mas principalmente com ideias!) e não esta gente vazia, sem história, sem cultura, sem coluna vertebral, que usurpou o poder em Portugal.

Não tenho dúvidas que também teria as minhas desilusões, deceções e desencantos, mas teria gente capaz de pensar, arriscar, corrigir e talvez fosse possível mudar Portugal para melhor!

(O pesadelo era ter hermans josés, toys, arrojas, isto é o mais grosseiro populismo a tomar conta do país!)

O difícil será ter gente de qualidade a disponibilizar-se para trabalhar e ter amargos de boca a bem da Nação e do coletivo! Mas a entrevista de Fernando Ulrich ao Expresso deste fim de semana, revelando que gostaria de ser deputado quando abandonasse as funções de banqueiro, despertou-me esta fantasia ...

PS - a quem passar por aqui, peço que perca um momento a indicar uma ou duas pessoas em quem gostaria de poder votar para seu deputado(a). 
É um exercício que obriga a refletir, responsabilizar e mais produtivo do que poderá parecer à primeira vista! 

MOBILIDADE



Veio-me há dias à memória uma acalorada discussão que tive há meia dúzia de anos, sobre a necessidade dos europeus se tornarem mais disponíveis para mudarem de local de trabalho e residência ao longo da vida.
Argumentava eu que os programas Erasmus, as companhias low-cost, a unificação linguística europeia, eram todas faces de uma mesma estratégia, planeada, de se criar uma cultura de mobilidade populacional, mais favorável a uma sociedade "rentabilizada" e utilitarista, de acordo com um modelo mais próximo do americano.
Recordo também uma entrevista com alguns anos de Belmiro de Azevedo, que clamava contra uma legislação que lhe dificultava recolocar em Viana do Castelo um empregado excedentário em Faro.
Compreendo que do ponto de vista de um empresário ou de um político setorial, tal possibilidade facilitaria imenso a sua atividade, conduziria a uma gestão mais otimizada da sua empresa, do seu departamento.
Mas do ponto de vista global, levando em consideração a multitude de aspetos da sociedade - cultural, familiar, sanitária, moral, logística, económica, assistencial, ambiental, ..., será que esse paradigma demográfico será mesmo mais vantajoso?
Embora pareça ser esse o entendimento atual dos nossos governantes, penso que tal opção social deveria ser tomada consciente e coletivamente, ao invés desta forma totalitária de decidir que vigora no mundo contemporâneo, que consiste em conduzir as nossas vidas para cenários que depois são apresentados como inevitáveis e sem alternativa.

Estou em crer que o modelo latino ou mediterrânico de sociedade, apesar de estar na mó de baixo, tem virtualidades que não trocaria pelas da "idílica" sociedade racionalizada de matriz anglo-saxónica, com adereços pós-modernos e neo-liberais, que nos tentam impingir.
Gosto de viver na terra onde já viveram os meus antepassados, beber vinho de uma ramada plantada pelo meu avô, saber a história familiar e a fiabilidade dos meus conterrâneos (sem necessitar de um relatório de rating), ouvir os anciãos comentarem que o meu filho se parece com o meu pai, saber a minha mãe e os meus irmãos por perto.
Dirão alguns que é nostalgia bacoca, e será, mas gosto dela. E mais, estou convencido que não é de sentimentalismo que se trata, mas de uma forma de organizar a sociedade com milhares de anos de história e que revelou ser até agora a mais harmoniosa, mais geradora de felicidade e mais sustentável económica e ambientalmente que o Mundo conheceu. (Os bárbaros têm agora o seu tempo ...)
E que não estou disposto em embarcar numa experiência social coletiva, quiçá sem retorno, a troco de melhores indicadores económicos e promessas de amanhãs que cantam.

Tudo isto voltou à baila a propósito da visita, na semana passada, da srª Merckel a Espanha, em que veio exercer opção sobre uns milhares de jovens engenheiros, a troco dos apoios económicos solicitados. Precisará de 50 000 nos próximos anos na capital do império e eles terão de ir das províncias mais atrasadas e com maiores problemas económicos.
De Portugal terão emigrado cerca de meio milhão de pessoas nos últimos 10 anos, crê-se que também com um perfil académico diferenciado. Até aí nada de novo, já não é a primeira vez que tal acontece, as crises originam inevitavelmente movimentos adaptativos espontâneos.
O que há neste episódio com a chanceler que à minha moral latina soa como pornográfico - o planeamento entre dois políticos de uma cedência de um lote dos mais promissores de uma geração para apaziguar um credor e simultâneamente resolver um problema  gerado pela incompetência de quem governa (uma taxa de desemprego acima dos 20%), é a perda de vergonha, a moral da realpolitik como standard ético europeu.

Poucos me acompanharão neste paralelismo, mas o meu inconsciente evocou as imagens dos esclavagistas a negociarem com chefes tribais africanos.
Disparate, não é!?
Na altura poucas vozes se insurgiram e na realidade muitos dos descendentes dos que embarcaram agrilhoados, têm hoje padrões de vida que nunca teriam alcançado se tivessem continuado em África, tendo-se com o tempo esbatido toda a descriminação original (hoje, um seu descendente é Presidente da maior Nação do Mundo).
Haverá quem se interrogue se o destino de África, se não tivesse sido sucessivamente expoliada dos seus melhores recursos, humanos e materiais, teria sido o mesmo!
Também há, os que levados por uma intransigência de princípios bacoca, continuam a ser contra a escravidão apenas por razões morais!
Pobres desses que não compreendem que a história segue as permissas dos poderosos!
E afinal Sócrates, porque não distribuistes os Magalhães com softwear em alemão?

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Circunstâncias!

Já agora, quem disse "Eu sou eu, mais a minha circunstância"?

Também disse, explicando melhor:

"A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades, o que em efeito vamos ser.
Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida.
A circunstância – as possibilidades – é o que da nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege o seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. O nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra a nossa vida.
Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajectória está absolutamente pré-determinada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo – o mundo é sempre este, este de agora – consiste em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e, consequentemente, força-nos... a eleger. Surpreendente condição a da nossa vida!

Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo.
Nem mum só instante se deixa descansar a nossa actividade de decisão.
Inclusivé quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir.

É, pois, falso dizer que na vida «decidem as circunstâncias».

Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso carácter. "


Esta atitude filosófica é antagónica da de Herédoto que afirmou:

São as circunstâncias que governam os homens, não os homens que governam as circunstâncias !

E você já agora, que acha?

As Vinhas da Ira



Alguém disse, que cada pessoa é ela própria mais as suas circunstâncias!
Este livro, uma saga épica de uma família e dum povo, não podia ser mais demonstrativo desta asserção.
Uma família rural, conservadora, da América profunda, submetida à dura prova da perda da terra, com a sobrevivência em risco, vai, conforme migra para oeste, modificando o seu modo de pensar, a sua dinâmica interna de poder, a sua forma de estar na vida.
Mantendo-se fiel aos seus princípios, radicaliza as suas posições, porque assim lhe ditaram as circunstâncias.
Escrito na perspetiva dos desamparados, faz-nos entrar na sua pele (no que somos ajudados pelo contexto social atual!) e ver o mundo na "perspetiva bolchevista"! Sentimo-nos acossados, "oackies" e respeitamos a sua dignidade intacta, face à sua desesperada situação.
Imaginamos que se fossemos um Californiano "invadido", pensaríamos de forma diversa, atemorizados pela concorrência desleal de quem não tem nada a perder, quiçá roçássemos o chauvinismo, como somos tentados face aos romenos que nos perturbam, porque são sujos, ladrões, capazes de tudo!

As personagens revelam uma pujança quase indestrutível, fortemente ancorada numa coesão familiar que mantêm apesar de todos os malogros que se vão sucedendo. A figura matriarcal, uma verdadeira mãe coragem brechtiana, assume os comandos do destino colectivo, percebendo ser a figura charneira da família.
A escrita tem um tom descritivo detalhado, realista, que nos convoca para a história e nos vai envolvendo irreversivelmente no destino dos Joad. Alternando com os capítulos em que é explanada a história, surgem "intermezos reflexivos", que teorizam ou contextualizam a ação que vai decorrendo.
Há verdadeiras jóias como o capítulo que descreve o negócio do comércio de viaturas usadas e que estou em crer ajudou a criar o arquétipo do "vendedor de automóveis"; ou o diálogo da mãe com o empregado do armazém da quinta onde colhem algodão, em que a sua frontalidade e simplicidade, desmonta desconcertantemente o cinismo verruminoso do lojista.

Os curiosos pela mecânica automóvel, têm neste romance, em que um velho camião é uma das personagens centrais, motivos de júbilo suplementares.
A narrativa é também uma road story ao longo da mítica 66, muito antes de Kerouac lá voltar - em vez dos móteis temos aqui as bermas e os acampamentos clandestinos, o psicadelismo é aqui substituído pela fome e o medo, as trips desta história são o sentimento de injustiça e revolta que vai fermentando.

Depois de ter criado uma intensidade dramática fortíssima, Steinbeck termina o livro com um episódio que foi à época mal aceite e que continuo a achar desnecessário e excessivo, mas que consegue pela sua intensidade rematar a história, deixando contudo em suspenso o destino dos Joad.
Nesta epopeia, um ácido cepticismo sobre a natureza humana, co-habita com a esperança no futuro, pela nossa capacidade, quase sem limites, de sobreviver, nos contextos mais adversos.

O Mundo continua igual quase cem anos depois e embora a envolvência histórica em que decorre a acção nos permita contornar a  angústia, torna-se óbvia uma coisa tão simples, mas tão esquecida como esta: aquilo que nos parece adquirido e irreversível, rapidamente desaparece se assim for ditado pelas circunstâncias.
Esperemos que não venhamos nunca a ter as nossas hoovervilles (cavacovilles, socratovilles, sei lá!).