ESTOU PERDIDO, DEVO PARAR? NÃO SE PÁRAS ESTÁS PERDIDO! Goethe

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Salman, filho da Meia Noite!

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Personagem polémico, exibicionista, sexualmente obsessivo, religiosamente traumatizado, Salman Rushdie, tem em Os Filhos da Meia Noite uma obra à sua altura, em que parece ter querido despejar exaustivamente a sua visão do mundo.
Seu segundo livro, publicado em 1981, numa altura em que ainda não se dedicava exclusivamente à literatura, continua quase unanimemente a ser considerado o seu melhor livro!

A história na realidade é a da Independência do Industão, entrelaçada numa saga familiar, que se inicia em Caxemira com o avô da personagem central - Saleem Sinai e é narrada num registo que se pretende próximo da oralidade desorganizada (mas muito trabalhada), à sua futura mulher, cuidadora, salvadora, Padma, aliás a Deusa da Bosta.
Saleem terá muito de Salman - ambos nasceram em 1947, ano da Independência da Índia e Paquistão, oriundos de famílias Caxemires, passaram a infância em Bombaim, viram as respetivas famílias migrar para o Paquistão em 1964.
E além disso há a aparência física - Saleem, o Muco na Penca, o Sorve Ranho, o Cara de Mapa, o Pedaço de Lua, também Buda, o cão pisteiro, partilha com o autor um nariz proeminente, uma tonsura capilar precoce, umas pálpebras que não fecham e outras particularidades que não podem ser desvalorizadas ("cresci com as pernas irremediavelmente tortas, porque me pus de pé cedo de mais" (..) com "um ano, duas semanas e um dia" -  idade afinal normal para qualquer criança andar!?.)
E a futura mulher, que pacientemente escuta a sua febril narração, será afinal a Padma Lakshmi, sua quarta mulher desposada em 2004 (foto), de origem indiana e apresentadora dum reality show americano ("Top Chef")?

O ritmo da escrita é alucinante, com permanentes histórias laterais, apartes, devaneios. O estilo é feérico, excessivo, caleidescópico, diria mesmo ruminante, com a história a ser sucessivamente regurgitada e mastigada, sendo nisso fielmente indiano, país dos excessos - de cor, de desgraça, de cheiros, de imaginação.
Nenhum país incorpora tantas religiões e um panteão tão povoado e improvável. Deuses que têm mil representações, shivas de inúmeros membros e divindades de cabeça de elefante.
Saleem Sinai tem um filho, no preciso momento em que era declarado o estado de sítio e suspensa a democracia pela Viúva - Indira Gandhi (25 de Julho de 1972).   Filho que afinal não era seu, mas era neto dos seus pais e tinha orelhas de elefante - tal como Ganesh, com quem tinha em comum ser filho de um Shiva e de uma Pavarti.

Um país de imaginário ancestralmente pop e que continua a gerar gurus que atraem ciclicamente vedetas ocidentais (como um dos filhos do livro, Cirus transmutado em Khusro, que era "visitado por guitarristas americanos, que se sentavam aos seus pés e nenhum se tinha esquecido do livro de cheques"). Sendo uma narrativa comentada da Índia, o leitor que não for um bom conhecedor da sua história perde muitas das ironias, referências, interpretações (houve mesmo um primeiro ministro que bebia a sua urina? Os lideres comunistas retratados são reais ou delirados? a resolução da crise do Paquistão Oriental/Bangladesh, fez-se com festejos?).
Perpassa em todo o livro uma muito salutar capacidade de gozar consigo próprio e com o seu país ( "cada indiano tem uma versão da Índia! ).

Este livro tem demasiadas coisas lá dentro, muito excesso e muitas preciosidades!
Como todos os grandes livros é atual e aplica-se-nos - " No dia em que ao mesmo tempo, subiram os impostos e baixaram as isenções! É como quem vai à retrete - camisa para cima e calças para baixo! Este governo trata-nos como a uma retrete!" Aliás há mais referências a Portugal - uma Carmen Verandah de chapéu de frutas que não poderá ser outra que a nossa, do Marco, Carmen Miranda! - a inevitável Catarina de Bragança, que em 1660 levou de dote para Carlos II de Inglaterra, nada menos que Bombaim ( que derivará do português Bom Bahia )!
Das incontáveis histórias dentro da narrativa, retenho a do Fórum Radiofónico dos 581 garotos filhos da meia noite, que ocorre telepaticamente promovida pelos dons mediúnicos de Saleem na e que é uma antevisão profética e poética do Face Book.

Sendo necessário um ritmo de leitura pujante, para não nos atolarmos nas permanentes manobras de diversão, lê-se este delírio de uma personagem paranóica que interpreta o percurso histórico da Índia como decorrente da sua história pessoal, como se a História acontecesse toda em sua função, com o objetivo último de o tramar a si e aos 1001 filhos dessa meia noite de 15 de Agosto de 1947, em que a Índia se tornou um Estado Independente.

Estabelecendo uma conexão com um livro aqui comentado recentemente (A tia Júlia e o Escrevedor), este parece um fenomenal folhetim de Pedro Camacho, cujo sucesso tão apoteótico terá seguramente muito a ver com a importância social, económica e cultural da comunidade hindu no mundo anglosaxónico e com o tom de refinada auto-ironia, que preveniu a rejeição dos antigos colonos.

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