ESTOU PERDIDO, DEVO PARAR? NÃO SE PÁRAS ESTÁS PERDIDO! Goethe

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quarta-feira, 20 de julho de 2011

No Coração Desta Terra

1. Hoje, o meu pai trouxe para casa a sua noiva. Atravessaram planícies, toque-toque, numa carreta puxada por um cavalo, com uma pena de avestruz a adejar na cabeça, suja por causa da longa caminhada. Ou talvez tivessem sido puxados por duas mulas de plumas - também era possível. O meu pai vinha de fraque e cartola, a noiva trazia um chapéu de aba larga e um vestido branco apertado na cinta e no pescoço. Não posso contar mais pormenores a não ser que os invente, já que não os vi chegar. Estava no meu quarto, de portadas fechadas, no lusco-fusco esmeralda do fim de tarde, a ler um livro ou, o que seria mais provável, deitada, com uma toalha húmida nos olhos por causa da enxaqueca. eu sou das ficam no quarto a ler, a escrever ou curar a enxaqueca. As colónias estão cheias de raparigas assim, mas nenhuma, acho eu, tão radical quanto eu.


J.M. Coetzee (n.1940), escreve em 1977 "No Coração Desta Terra".
Um discurso obcessivo, prisioneiro da mente alucinada de Magda, uma "menina" colonial a quem a solidão numa quinta agreste da estepe africana, empurrou para a loucura.
Apontado como uma metáfora da situação social, cultural e rácica da África do Sul, o livro fez-me lembrar a estrutura narrativa de "Estorvo", o primeiro livro de Xico Buarque, de que não guardo boa memória.
Apesar do contexto concentracionário do monólogo, comum a ambos os livros, Coetzee  revela uma mestria literária que faltou em Buarque.
Livro duro, sobre uma realidade em carne viva, em que o discurso vai vagueando por diferentes alternativas, aparentemente incompatíveis, mas provavelmente complementares - um pai distante ou um pai violador?, uma filha assassina ou uma cuidadora perdida?, uma patroa branca violada ou fantasias virginais doentias?, uma jovem madrasta concorrente ou uma criada violentada? ou tudo isso e mais a inexorável decadência de uma sociedade bipolar, na eminência de um conflito de povos e culturas?!

Escrita seca a condizer com a paisagem e o contexto histórico, no primeiro sucesso de uma carreira literária que passaria pelo Nobel - um autor a revisitar!

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