Mark Twain, considerado o "pai" da literatura americana, escreve em 1889 "Um americano na corte do Rei Artur". Trata-se de uma escrita mordaz e despreocupada, que relata uma viagem espaço temporal de um Yankee de Conneticut que aparece "mágicamente" na Bretanha do século VI, na sequência duma pancada na cabeça.
Dotado dos conhecimentos técnicos e científicos da era Industrial, Hank Morgan corresponde para o bem e para o mal, à imagem que ainda hoje temos dos americanos - empreendedores, autoconvencidos, desconhecedores e indiferentes às realidades culturais, religiosas e sociais, que não as suas.
Introduzindo-se com mestria no círculo próximo do Rei Artur, conseguindo desacreditar o influente mago Merlin e substituindo-se no seu papel de grande feiticeiro - neste caso recorrendo a meios técnico-científicos com 14 séculos de vantagem e não à credulidade popular, o nosso Internauta ascende ao estatuto de The Boss ("o Mestre", na tradução portuguesa), implementando uma série de iniciativas que vão desde a publicidade e o marketing, à formação de escolas técnicas, onde pontifica mesmo uma West Point medieval, onde se formarão os seus lugares tenente.
Despreocupado com a coerência plausível do relato e dotado de um humor próximo do non-sense (retomado quase um século depois por Monty Python e sequelas), Mark Twain equipa a Inglaterra dos cavaleiros da Távola Redonda, de Telégrafos, Caminhos de Ferro, Centrais Elétricas e consegue pôr uma nobreza que considerava inútil e ignorante a maquinistas e guarda freios. E como não tenha sido fácil fazê-los desistir das suas pouco práticas armaduras, cria uma unidade de cavaleiros encasulados em aço, montados em rápidas bicicletas...
De leitura agradável e sempre com um sorriso na mente, o leitor tem permanentes motivos de divertimento, como o nome carinhosamente dado por Sandy, especializada nos relatos infindáveis das façanhas do marido, à filha que concebe do americano - Alô Central, a palavra com que esta abria as comunicações telefónicas.
Contudo o livro não se resume ao resultado da prodigiosa imaginação de Mark Twain em completa roda livre. Reflete de forma muito incisiva sobre questões de todos os tempos - a irracionalidade das massas populares e o papel da crendice e da religião nesse processo, a desconfiança com o novo, a necessidade de recorrer ao mágico e a uma aura de superioridade, em vez da evidência da razão, para se afirmar junto do povo e do poder!
E o fim, é a mais eloquente prova da máxima que "não adianta ter razão antes do tempo" e de que nada se consegue contra tudo e contra todos - mesmo que se detenha o poder máximo, é indispensável ter o apoio e a compreensão dos demais, para se conseguir afirmar. Verdade, que infelizmente ainda hoje os americanos (e outros) parecem não ter percebido.
O livro e a sua "mensagem" principal são de uma atualidade gritante - o "Boss" acolitado pelos seus 52 agentes West Point, consegue, mercê de uma engenhosa tática militar, atingir uma supremacia indestrutível, mas vê-se na iminência de um extermínio em massa, já que não consegue conquistar ninguém para o seu campo. E num arremedo final de bom-senso, apesar do seu poderio supremo, desiste do seu sonho de dominação, abandonando todos os projetos.
Quem olha, despido de preconceitos, para as intervenções dos USA no Vietnam, no Iraque, no Afganistão, na Líbia e aprecia as suas habituais saídas de sendeiro dos teatros de terror que instala, percebe que esse erro já tinha acontecido no sec. XIX, com um Yankee de Conneticut e que houve um escritor de nome Mark Twain que escalpelizou as razões desse infortúnio, sem daí ter resultado grande proveito para a nação que o entronizou como escritor.
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